Não é de hoje que se consolida nas principais academias do mundo a visão de que um dos principais pilares da democracia moderna é uma positivação precisa, eficiente e sistemática não apenas da separação dos poderes, mas, também, da mecânica de retrocontrole entre um poder e outro, notadamente, através do desenho de institutos e procedimentos que constituirão a engenharia dos freios e contrapesos.
No ordenamento jurídico brasileiro (à similitude das principais potências do ocidente), um dos mais relevantes – quiçá, o mais relevante – desses institutos é a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, estatuída, primordialmente, no art. 58, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil1.
Em conceito, como o oferecido por Uadi Lammêgo Bulos2, pode-se definir que, a Comissão de Inquérito é uma denominação que se dá à comissão que se institui para proceder a um inquérito. É de caráter transitório e tem atribuições que duram enquanto se procede ao inquérito determinado, o qual tem a finalidade de investigar ou apurar os fatos de ordem administrativa, visando sempre o bem-estar da coletividade. Assim, a Comissão Parlamentar de Inquérito existe para investigar e fiscalizar fatos determinados ligados a uma obligatio juris, imposta pelo ordenamento jurídico, lastreada na exigência de se agir honestamente, à luz dos preceitos constitucionais e legais.
Consoante ensina Hely Lopes Meirelles3, as comissões parlamentares são grupos constituídos pelos próprios membros da casa legislativa a que se atribuem funções especializadas de estudo ou investigação de determinado assunto.
Tais comissões podem ser permanentes – como as Comissões de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; ou, temporárias, como é a CPI, a mais célebre delas, que extinguem-se com o término da legislatura, ou, com a atingimento da finalidade especial.
Sob uma perspectiva histórica, é de se entender que as comissões parlamentares de inquérito são uma decorrência natural do dever de fiscalização e controle das atividades do Estado (especialmente as do Poder Executivo) que se considera hoje, sem maiores discordâncias, como inerente à atividade parlamentar.
A comissão parlamentar de inquérito materializa esse dever de fiscalização em um procedimento formal de investigação, no qual os parlamentares, personificados na figura da comissão, exercem poderes próprios da autoridades judiciárias, para a apurarem, diretamente, fatos determinados de interesse público.
Como o próprio texto constitucional expressa, a Comissão Parlamentar de Inquérito, para ser instalada precisa de significativa manifestação de interesse público e político, qual seja o requerimento endossado por, no mínimo, um terço dos membros da casa legislativa, ou, do Congresso Nacional quando se tratar de comissão mista, possibilidade assegurada, também, no próprio texto da Lei Maior, hodiernamente.
No direito brasileiro, o instituto começou a ser positivado expressamente a partir da Constituição de 1934, a primeira a consignar, expressamente, a prerrogativa de os parlamentares instituírem comissões investigativas, embora, restrita à Câmara dos Deputados, todavia4. Desde então, excetuada a Carta Política de 1937, todas as demais previram o instituto, e, ao longo dessas transições de ordem jurídica, novos elementos vieram a ser incorporado, e sua forma lapidada.
Na Constituição de 1934, vale a menção, é que houve pela primeira vez a positivação do quórum mínimo para o requerimento de instalação dessa espécie de comissão, mencionado alhures, mas, também, pela primeira vez positivou-se uma delimitação formal para sua atuação, qual seja a determinação do fato a ser apurado.
A Magna Carta brasileira de 1946 manteve a previsão do instituto, e trouxe novos avanços, primeiro, expandindo a possibilidade da comissão também na Câmara Alta do Congresso5, e, pela primeira vez, preceituando a necessidade da representatividade proporcional dos partidos da casa na composição das comissões, uma tradição que se preserva no ordenamento jurídico atual.
É oportuno o registro de que foi sob a égide dessa constituição que foi promulgada a primeira norma infraconstitucional especializada sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito, a Lei Federal nº 1.579/1952, que comentar-se-á, melhor, mais adiante.
Prosseguindo a cronologia da positivação constitucional da Comissão Parlamentar de Inquérito no Brasil, a Carta de 1967 também previa o instituto, e,
na linha do que a referida Lei nº 1.579/1952 construíra, levou ao texto da constituição o fator de temporariedade do instituto, prevendo que as apurações da CPI seriam por prazo certo.
Não se pode deixar de apontar, contudo, que essa constituição foi concebida durante a Ditadura Militar (1964-1985), de modo que, apesar da positivação formal, na prática, a eficácia dos dispositivos se via limitada pela repressão do regime golpista6, limitação essa que depois veio a ser também ser oficializada no plano normativo com a Emenda Constitucional nº 01/1969 a qual criou disposições que restringiam as possibilidades da comissão parlamentar, por exemplo, dificultando a convocação de Ministros de Estado7.
Com a redemocratização do Estado Brasileiro, e o advento da atual Constituição Cidadã (1988), o instituto veio a ser revigorado, sendo que, nesta Carta Política, a positivação foi a mais completa, conjugando os diferentes avanços e evolução de prerrogativas na formatação da Comissão Parlamentar de Inquérito que as constituições anteriores haviam desenvolvido, fortalecendo o poder fiscalizatório da atividade parlamentar. Ainda, pela primeira vez, ficou positivada a possibilidade de encaminhamento das conclusões das investigações parlamentares ao Ministério Público para promoção de responsabilidades.
No plano infraconstitucional, a positivação da Comissão Parlamentar de Inquérito tem sua principal referência na já ventilada Lei Federal nº 1.579/1952, cujo texto atualmente congrega modificações trazidas pela Lei nº 13.367/2016.
Esse diploma legal tem sua importância por ser o primeiro a dissecar o instituto, estatuindo de maneira expressa poderes específicos que as Comissões Parlamentares de Inquérito, de fato, teriam nessa atividade, como requisitar documentos e informações oficiais de repartições públicas e autarquia, inquirir testemunhas compromissadas, e convocar Ministros de Estados e tomar depoimentos de quaisquer autoridades federais, estaduais e municipais.
A modificação do texto em 2016, manteve tal previsão de poderes, ampliando, todavia, para toda as esferas da Administração Pública, a
possibilidade de requisição de informações e documentos. O texto atual também consigna a terminologia empregada na Constituição quanto aos poderes, como “próprios das autoridades judiciais”.
Como já se comentou, nessa norma, foi prevista, pela primeira vez, a temporariedade da CPI, já que mesmo antes da previsão de que funcionará “por prazo certo” que a atual redação reproduz da Constituição, o texto original estatuía no § 2º, do art. 5º, que a “incumbência da Comissão Parlamentar de Inquérito termina com a sessão legislativa em que tiver sido outorgada, salvo deliberação da respectiva Câmara, prorrogando-a dentro da Legislatura em curso”.
A Lei nº 1.579/1952 também positivou, desde o texto original, a organização das conclusões obtidas na forma de um relatório final, a ser apreciado pela Casa Legislativa, e, a Lei nº 13.367/2016, inspirada na previsão da Carta Magna, incluiu na norma o art. 6º-A determinando o encaminhamento desse relatório, e documentos que o instruem ao Ministério Público – ou à Advocacia-Geral da União, inovação relativamente o texto constitucional, para providências de responsabilização cível e criminal, entre outras. Gize-se que o relatório deve ser votado, e aprovado via uma resolução da casa (art. 5º).
Oportuno, neste ponto, destacar a Lei nº 10.001/2000, que amplia o rol de possíveis destinatários do relatório da CPI, para incluir “autoridades administrativas ou judiciais com poder de decisão, conforme o caso, para a prática de atos de sua competência” (art. 1º), estabelecendo, também, o dever de que a autoridade a quem tenha sido encaminhado o relatório informe a casa legislativa que o remeteu, no prazo de 30 dias, quais as providências adotadas, ou a justificativa da omissão – e, determina, que no caso de ser instaurado qualquer procedimento ou processo com base nas conclusões da CPI, a autoridade que presidir o expediente deverá comunicar, semestralmente, o status do andamento, até à conclusão (art. 2º).
Vale ressaltar que para esse procedimento ou processo, o diploma legal ainda assegurou a prioridade (quase) absoluta de tramitação, só podendo ser preterido pelos remédios constitucionais habeas corpus, habeas datas e mandado de segurança (art. 3º). A norma sujeita a autoridade que a descumprir
a sanções cíveis, administrativas e penais – não obstante, nenhuma dessas sanções é especificamente prevista, ou especialmente criada, na própria norma, de modo que, subentende-se que isso dependerá do enquadramento na legislação geral aplicável.
É devida, ainda, menção à alteração no texto original da Lei nº 1.579/1952 trazida, ainda, pela Lei nº 10.679/2003, que adicionou ao art. 3º um segundo parágrafo, assegurando que qualquer depoente na Comissão Parlamentar de Inquérito possa se fazer acompanhar de advogado, mesmo em reunião secreta.
Um último destaque pertinente sobre a Lei nº 1.579/1952 é que ela criou novos tipos penais especiais, relativos às atividades das Comissões Parlamentares de Inquérito, quais sejam o de impedir, ou tentar impedir, mediante violência, ameaça ou assuadas, o seu regular funcionamento, ou o livre exercício das atribuições dos seus membros (art. 4º, I); e, ainda, o de fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor ou intérprete, perante a Comissão (art. 4º, II).
A bem da verdade, ambos os tipos são especializações de outros que já se encontravam previstos, respectivamente, no art. 329 e art. 342 do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), porém, não deixam de ser relevantes, porquanto eliminam dúvidas da configuração dos delitos no contexto dessa atividade parlamentar – o que facilmente se poderia discutir antes disso, por exemplo, o referido art. 342 que lista as instâncias em que o crime de falso testemunho (e/ou falsa perícia) poderia se configurar, não elenca a álea parlamentar.
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